
Introdução
Existe, na cabeça de muita gente, inclusive de quem deveria saber ensinar, a ideia de que a parte mais importante de um curso de tiro é a prática. É o barulho. O cheiro da pólvora. O momento de empunhar a arma e atirar. Para esse tipo de instrutor, a aula só começa de verdade quando a munição entra no carregador.
A teoria? O treinamento a seco? O estudo do gesto técnico?
Tudo isso seria, digamos… um mal necessário. E ainda acham que é “chato demais pro aluno”.

Essa visão, além de preguiçosa, é perigosa.
Mais do que uma falha de método, é uma inversão completa da lógica de ensino.
Quando se despreza o preparo técnico antes do estande, forma-se gente que até acerta o alvo, mas sem saber exatamente como chegou lá.
E o pior: muitos desses viram instrutores depois. Repetem o erro, criam discípulos do improviso e alimentam uma cadeia de desinformação armada.
A origem do equívoco: o fetiche do disparo
Não é de hoje que o tiro no Brasil virou uma espécie de show. O estande virou palco. E o aluno, plateia.
O disparo é tratado como clímax, não como consequência de um processo.
Muitos instrutores percebem que o aluno sorri mais com o estampido do que com a explicação.
Resultado? Cortam conteúdo, pulam etapas, atropelam a base.
Afinal, é mais fácil entregar barulho do que fundamento.
É menos trabalhoso entreter do que ensinar.
Só que ensinar, bem… não deveria ser um concurso de popularidade.
O que a prática realmente é: conferência, não construção
A parte prática do curso deveria ser a hora de checar se o aluno absorveu tudo o que foi ensinado.
É o momento de validar, não de começar.
A construção técnica vem antes:
Começa na teoria, se firma no treinamento a seco e se consolida com repetição intencional.
O estande tem ruídos. Estampido. Recuo. Pressão. Expectativa.
Nada ali é estável.
Por isso, se o gesto não foi solidificado antes, o aluno simplesmente vai reagir — e não aplicar.
É simples: aquilo que não se fixou em silêncio, o barulho não vai resolver.
Por que o aluno “gosta mais” da prática
Porque é empolgante, óbvio.
Atirar dá adrenalina, dá prazer, dá sensação de poder.
Mas se o curso for montado só pra agradar o ego do aluno, o que se está formando? Um atirador? Ou só mais um entusiasta com carteirinha?
O papel do instrutor não é fazer o aluno se divertir.
É fazer ele entender.
O bom instrutor mostra que a repetição a seco, feita com seriedade, vale mais do que vinte disparos mal executados.
O ruim usa o barulho como cortina de fumaça para esconder o que não sabe ensinar.
O prejuízo dessa inversão
Cursos montados com foco excessivo na prática e pouco (ou nenhum) compromisso com a base técnica:
- Criam atiradores inseguros que não entendem o que fazem
- Alimentam vícios posturais e gestuais difíceis de corrigir depois
- Dão a ilusão de preparo quando só houve performance
- E pior: deixam o aluno vulnerável em uma situação real, onde a reação precisa ser automatizada e consciente, não instintiva e teatral
Conclusão: prática sem fundamento é ilusão
Sem teoria, sem treino a seco, sem progressão, a prática é só um espetáculo.
Pode até arrancar aplausos de quem assiste, mas não forma ninguém de verdade.
O gesto técnico nasce fora do estande.
Cresce no treino sem barulho.
Ganha sentido na repetição com propósito.
E só então é colocado à prova.
Quem ignora isso não está ensinando. Está brincando de ensinar.
E em um campo onde a vida pode estar em jogo, isso deveria ser inaceitável.
Reflexão filosófica
“A repetição consciente no silêncio vale mais que mil tiros sob aplausos.”
— releitura contemporânea de Aristóteles e do método deliberado
Conteúdo retirado da coletânea A ciência das armas
Sandro Christovam Bearare
Especialista em armamento, tiro e autodefesa, atuando há mais de 15 anos no setor de segurança e instrução tática. Autor de diversas obras sobre segurança pessoal, autodefesa e combate urbano, além de palestrante e consultor estratégico em gestão de risco e proteção pessoal.
Acesse o perfil acadêmico de Sandro Christovam Bearare no Google Scholar com artigos científicos sobre segurança, autodefesa, inteligência artificial, armas de fogo, psicopedagogia e tecnologias emergentes aplicadas à formação profissional e defesa e segurança pessoal.
Confira: https://scholar.google.com/citations?hl=en&user=7XFDIhkAAAAJ
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