
Quando o Estado pune a crítica, ele protege a própria mediocridade
O crime de desacato é mais do que uma tipificação penal: é uma mensagem subliminar que ecoa alto e claro na cultura brasileira. Ele comunica ao cidadão que o funcionário público — pago com seus impostos — não é um servidor, mas uma autoridade intocável. Pior: transforma quem deveria prestar contas em alguém que cobra reverência, mesmo quando é ineficiente, abusivo ou negligente.
O artigo 331 do Código Penal consagra essa inversão perigosa ao prever que:
“Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”
Essa redação ampla e subjetiva abre margem para que qualquer reação crítica — ainda que legítima — seja interpretada como crime. O funcionário público, protegido por essa norma, ganha uma blindagem especial contra cobranças. Ao menor sinal de indignação ou revolta, o cidadão pode ser acusado. E ai de quem reclamar. Neste cenário, qualquer protesto vira ameaça, qualquer cobrança vira ofensa, qualquer indignação vira “desrespeito”.
Enquanto isso, o cidadão e o empresário — que sustentam toda a máquina pública com trabalho árduo e enfrentam diariamente a alta tributação, a burocracia incansável e os serviços públicos imprestáveis — não têm o mesmo privilégio. São tratados como inferiores, suspeitos, adversários. Vivem sob constante vigilância e chantagem estatal, sem direito sequer de levantar a voz contra a ineficiência de quem deveria servi-los.

Casos de corrupção abundam: de obras superfaturadas como as encontradas na Operação Lava Jato, ao escândalo dos kits de robótica em Alagoas, até desvios em emendas parlamentares usados como moeda de troca política. E os serviços públicos continuam refletindo esse desprezo: hospitais sem médicos nem insumos, escolas sucateadas, estradas intransitáveis, e uma segurança pública que frequentemente trata o cidadão de bem como inimigo em potencial.
E quando o cidadão cobra, frequentemente é punido. Como no caso do vendedor ambulante detido por “desacato” no Rio de Janeiro. Ou do pai de família em Salvador algemado dentro de uma delegacia por protestar contra a demora no atendimento de uma ocorrência de furto. Ou ainda da agricultora no Paraná presa por exigir atendimento médico.
Esses não são casos isolados — são sintomas de uma cultura de opressão disfarçada de legalidade. O crime de desacato é usado como escudo por servidores medíocres e como arma contra cidadãos conscientes. Ele reforça o abismo entre o Estado e o povo, blindando a máquina contra críticas, e impedindo que os verdadeiros donos do poder — os contribuintes — exerçam seu direito básico de cobrança.

Num país onde até ministros e presidentes de estatais já foram flagrados saqueando cofres públicos com naturalidade, é o cidadão que ousa reclamar da fila do SUS que acaba algemado. Onde juízes vendem sentenças, policiais extorquem comerciantes e fiscais ameaçam empresários, é o povo indignado que vira réu.
A permanência do crime de desacato revela uma chaga cultural: a do brasileiro domesticado, que teme mais a farda do que o abandono, mais a autoridade do que a injustiça, mais a bronca do que o descaso. Não é à toa que tantos servidores públicos tratam o cidadão com desdém: sabem que, se forem cobrados com firmeza, podem acionar o aparato penal a seu favor.

Num Estado verdadeiramente democrático, o servidor público presta contas ao povo — e não o contrário. Criticar, cobrar, protestar: esses são os pilares da cidadania, não crimes. Manter o desacato como infração penal é perpetuar a ideia de que o cidadão deve baixar a cabeça — e, se levantar a voz, que arque com as consequências. É, em última instância, institucionalizar o medo e proteger a mediocridade.