
A prática da caça acompanha a história da humanidade desde seus primórdios. Mais do que uma técnica de sobrevivência, a caça foi durante milênios uma forma de estabelecer relações familiares, desenvolver habilidades motoras e cognitivas, criar cultura e moldar identidades. De arcos rudimentares a rifles modernos, caçar foi e continua sendo um ato de conexão direta com a natureza — e, sobretudo, com o alimento.
A caça na história humana: cultura e nutrição

Antes do advento da agricultura, a caça era a principal fonte de proteína animal. Mesmo após a domesticação de espécies, muitas culturas mantiveram o hábito da caça como parte da vida cotidiana. Entre os povos nórdicos, por exemplo, a caça de alces, ursos e aves é tradicional há séculos e permanece viva até hoje, associada à gastronomia e à herança cultural. O mesmo vale para comunidades dos Apalaches nos EUA, do interior da Europa Oriental e dos pampas sul-americanos.
A caça também está relacionada a uma divisão de trabalho e saberes: homens, mulheres e crianças sempre tiveram papéis específicos nas atividades de coleta, rastreio, abate e preparo. Estudos antropológicos apontam que a carne obtida por caça tem valor simbólico e está associada à força, autonomia e respeito pela natureza (Kelly, R.L., The Foraging Spectrum, 1995).
A falácia da “subsistência legalizada” no Brasil

No Brasil, a caça é em sua maioria proibida, exceto quando praticada por determinados grupos sociais sob o rótulo de “caça de subsistência”. Mas esse termo é mentiroso e ideológico. Não se trata de subsistência, mas de identidade cultural, autonomia alimentar e tradição. A Lei nº 9.605/98 e o Decreto nº 6.514/08 permitem a caça apenas a índios e comunidades quilombolas, excluindo a maior parte da população rural — que, em muitos casos, possui o mesmo grau de dependência da fauna silvestre para alimentação.
Além de injusta, essa legislação é elitista e desconectada da realidade. Impede que milhares de brasileiros obtenham proteína limpa, saudável e sustentável, obrigando-os à dependência do mercado, de políticas públicas falhas e da alimentação ultraprocessada. Em tempos de insegurança alimentar, proibir a caça de espécies abundantes é um crime contra a população pobre do campo.
Carne de caça: qualidade superior e menor impacto
A carne proveniente da caça possui menores teores de gordura saturada, melhor perfil lipídico e maior concentração de micronutrientes como ferro heme, zinco e vitamina B12. Um estudo da Universidade de Nebraska (2020) comparou carne de cervo e carne bovina, demonstrando que a carne de caça tem até 5 vezes menos gordura e 3 vezes mais ômega-3 fonte.https://digitalcommons.unl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1065&context=usfwspubs
Outro estudo, publicado no Journal of Food Composition and Analysis, apontou que carne de javali selvagem contém menos colesterol e gordura total do que carne suína convencional, sendo uma excelente opção para prevenção de doenças cardiovasculares (Grau, A. et al., 2014).
Além disso, o consumo de carne de caça reduz a pegada ecológica da produção animal. Não há uso de ração, antibióticos, hormônios ou confinamento. O impacto ambiental é mínimo quando a caça é bem regulada, seletiva e voltada à alimentação.
O que a ciência diz
Carne de Caça e Saúde: Um Estudo Comparativo com Dados Científicos
Um estudo recente conduzido por Di Bella et al. (2024), publicado no Italian Journal of Food Safety, analisou de maneira rigorosa a composição nutricional da carne de javalis selvagens abatidos na região da Úmbria, Itália. O objetivo era comparar essa carne com a carne de porcos criados em dois sistemas distintos: intensivo (em ambiente fechado) e extensivo (ao ar livre). A pesquisa fornece uma das análises mais completas já feitas sobre os benefícios da carne de caça em comparação com a carne suína industrial.
Metodologia e Amostragem
Foram utilizados 20 javalis adultos (>12 meses), caçados legalmente sob plano de controle populacional entre outubro de 2022 e abril de 2023, e 40 suínos híbridos domésticos (20 criados indoor e 20 outdoor). Os pesquisadores coletaram amostras do músculo Longissimus lumborum (muito utilizado para análise de qualidade de carne), que foram analisadas para determinar composição centesimal, perfil de ácidos graxos, capacidade antioxidante e índices nutricionais.
Principais Resultados
Os resultados demonstraram que a carne de javali:
Apresenta menor teor de gordura total (2,23%) do que a dos suínos (3,69% indoor e 4,65% outdoor);
Possui uma proporção de ácidos graxos poli-insaturados (PUFA) significativamente superior (20,68%) em comparação com porcos de criação (11,44% outdoor e 8,76% indoor);
Apresenta um índice PUFA/SFA (0,61) acima da recomendação mínima de 0,40 para prevenção de doenças coronarianas — superior ao dos porcos (0,24 indoor; 0,29 outdoor);
Tem menor índice aterogênico (IA = 0,39) e índice trombogênico (IT = 0,86), e maior índice hipo/hipercolesterolêmico (h/H = 2,77) do que qualquer grupo de suínos analisado.
Além disso, a carne de javali mostrou maior capacidade antioxidante (medida em μmol Trolox equivalente/g), fator associado à proteção contra inflamações e envelhecimento celular.
Conclusão dos Autores
Os autores concluem que a carne de javali é nutricionalmente superior à carne de porco de criação, sendo uma fonte valiosa de proteína com perfil lipídico mais saudável e potencial preventivo de doenças cardiovasculares. Eles recomendam a promoção do consumo da carne de caça como alternativa legítima, ética e saudável à carne de produção industrial.
Esse estudo fornece base científica sólida para o argumento de que a caça controlada pode ser uma fonte de alimento de alta qualidade, contribuindo tanto para a segurança alimentar quanto para a saúde pública.

A caça como equilíbrio ecológico e consciência ambiental
A caça, quando praticada com responsabilidade, promove o controle de populações de espécies invasoras e superabundantes, como o javali no Brasil. O javali europeu (Sus scrofa) é uma praga rural que destrói lavouras, ameaça ecossistemas e transmite zoonoses. Segundo dados da Embrapa, os prejuízos causados por javalis à agropecuária brasileira ultrapassam R$ 1 bilhão por ano fonte.
Nos EUA, mais de 6 milhões de javalis selvagens causam anualmente US$ 2,5 bilhões em danos, levando estados como Texas, Alabama e Flórida a incentivar sua caça com subsídios fonte.
Além disso, caçadores geralmente são os maiores defensores da conservação da natureza. A National Shooting Sports Foundation (NSSF) mostra que os caçadores contribuem com mais de US$ 1 bilhão anuais para a conservação da fauna nos EUA, através de licenças, impostos e doações fonte.
O que a ciência diz
Caça Controlada e Conservação da Biodiversidade
Enquanto parte da opinião pública mundial clama pelo banimento da caça esportiva — impulsionada por casos midiáticos como o do leão Cecil no Zimbábue —, a ciência mostra uma realidade bem diferente. Um estudo publicado na revista Trends in Ecology and Evolution, assinado por Di Minin, Leader-Williams e Bradshaw (2016), argumenta que a proibição da caça de troféus pode, na verdade, agravar a perda de biodiversidade.
Contexto e Objetivo do Estudo
Os autores rebatem a pressão internacional por proibições generalizadas, destacando que, quando bem regulamentada e baseada em critérios científicos, a caça pode ser uma ferramenta essencial para financiar a conservação ambiental e gerar benefícios sociais diretos para comunidades locais. A análise foca principalmente na África Subsaariana, região onde a caça de troféus movimenta centenas de milhões de dólares por ano e protege milhões de hectares de habitat natural.
Principais Conclusões
Conservação financiada por caçadores: Na África do Sul, apenas em 2012, a caça gerou mais de US$ 68 milhões, dos quais mais de US$ 28 milhões vieram apenas dos “Big Five” (leão, elefante, búfalo, rinoceronte e leopardo). Países como Tanzânia, Botswana e Namíbia têm economias de conservação fortemente ligadas à atividade cinegética.
Uso sustentável de áreas remotas: Ao contrário do ecoturismo — que se limita a áreas com boa infraestrutura e acesso —, a caça gera recursos em regiões remotas, com menos impacto ambiental e maior retorno por visitante. Um único caçador de troféus pode gerar mais receita que dezenas de ecoturistas, com impacto ecológico muito menor.
Estímulo à proteção comunitária:
Na Namíbia, por exemplo, os lucros da caça motivaram a criação de áreas de conservação comunitária (conservancies), resultando em aumento populacional de diversas espécies selvagens e expansão das terras protegidas sob gestão local.
Riscos do banimento total: Caso não seja possível obter receita com caça, os autores alertam que muitas áreas hoje usadas para conservação poderão ser convertidas para agricultura, mineração ou pecuária — atividades que causam muito mais perda de biodiversidade.
Recomendações dos Autores
O estudo propõe uma série de medidas para melhorar a eficácia da caça como instrumento de conservação, entre elas:
Levantamentos populacionais obrigatórios;
Certificações ecológicas para troféus;
Distribuição justa de receitas para comunidades;
Monitoramento governamental e transparência total nos dados.
Impacto prático para o Brasil
Ainda que o foco seja a África, as lições são claras: a caça, quando bem regulamentada, pode ser mais aliada da biodiversidade do que sua inimiga. O banimento indiscriminado baseado em histeria midiática pode resultar em consequências muito mais graves para o meio ambiente e para populações tradicionais que convivem com a fauna silvestre. O Brasil precisa debater seriamente o tema com base em dados e evidências — não em emoção ou ideologia.

Caça é formação de caráter e vínculo familiar
A prática da caça ensina paciência, disciplina, humildade e autocontrole. O caçador aprende a rastrear, esperar, observar e agir com precisão. Aprende também a lidar com a morte de forma respeitosa, entendendo que o alimento exige sacrifício. Leva seus filhos a entender a importância do esforço e da gratidão, ensinando-os a honrar cada refeição.
Nos EUA, mais de 1 milhão de jovens participam anualmente de caçadas acompanhadas por seus pais ou avós, em atividades promovidas por escolas, igrejas e comunidades locais. Isso fortalece vínculos, transmite valores e preserva tradições familiares.
Dados globais: a caça como política alimentar e cultural
- Estados Unidos: 11,5 milhões de caçadores licenciados (2022) – USFWS
- França: 1,1 milhão de caçadores ativos – OFB
- Alemanha: 400 mil licenças de caça válidas – BMEL
- Canadá: caçadores são responsáveis por 45% das ações de conservação da fauna – Environment Canada
Em muitos desses países, a carne de caça faz parte do cardápio institucional: escolas, hospitais e até restaurantes premiados incluem javali, veado e pato selvagem em seus menus. Isso reduz custos, valoriza a produção local e incentiva o manejo sustentável.
O que a ciência diz
Caça de Troféus na Ásia: Um Panorama Científico sobre Conservação e Benefícios Sociais
Embora o debate sobre a caça de troféus seja acalorado e frequentemente ideológico, um estudo publicado na Animal Conservation (2023) por Parker et al. oferece a análise mais abrangente já realizada sobre a prática da caça de troféus no continente asiático. A pesquisa compila dados de 11 países, abrangendo mais de 30 espécies caçadas legalmente, incluindo espécies ameaçadas, e analisa tanto aspectos ecológicos quanto socioeconômicos da atividade.
Objetivo e metodologia do estudo
O artigo visou preencher uma lacuna de conhecimento sobre os programas de caça na Ásia, onde, ao contrário da África, há pouca visibilidade internacional. Para isso, os autores analisaram:
73 publicações científicas e relatórios governamentais,
Dados de comércio da CITES (2010–2019),
Contatos diretos com especialistas locais e gestores públicos.
A pesquisa coletou informações sobre áreas de caça, espécies-alvo, valores de licenças, impacto sobre comunidades e mecanismos de repartição de receitas. A abrangência dos dados oferece uma visão inédita da importância da caça de troféus para a conservação da biodiversidade e para a economia local asiática.
Principais conclusões
Escala territorial gigantesca: A caça de troféus é permitida em 1 milhão de km² no Cazaquistão (37% do território), 332 mil km² na Turquia, e 70% do território do Quirguistão. Mesmo países com pequena área de caça, como o Nepal (apenas 1325 km²), mostram impactos positivos.
Espécies envolvidas: São pelo menos 30 espécies regulares, com destaque para o ibex siberiano, urial, argali, markhor e urso-pardo. Algumas estão classificadas como vulneráveis ou em perigo pela IUCN.
Ofertas e receitas: O valor médio das licenças varia de US$ 100 (javali, Turquia) a US$ 62.000 (markhor, Paquistão). Em muitos casos, as receitas geradas ultrapassam US$ 700 mil por ano por espécie, como no caso do argali no Tajiquistão.
Benefícios diretos às comunidades: A legislação da maioria dos países exige que 40% a 100% da receita fique com as comunidades locais. No Paquistão, por exemplo, 80% dos valores são repassados diretamente para projetos comunitários, como escolas, estradas e irrigação. No Nepal, o repasse chega a 100%.
Exportações de troféus: A Rússia lidera as exportações asiáticas, com 473 troféus por ano, seguida por Quirguistão e Tajiquistão. O principal importador é os Estados Unidos (35%), seguido por Espanha e Alemanha.
Governança variável: O estudo destaca modelos bem-sucedidos, como o CTHP no Paquistão, mas também aponta falhas em países onde a caça é controlada apenas por órgãos estatais, com pouca transparência e sem repasses locais, como ocorre em partes da Rússia, Quirguistão e Cazaquistão.
Recomendações dos autores
O artigo apresenta cinco recomendações para o futuro da caça de troféus:
Avaliação ecológica dos impactos demográficos;
Análise aprofundada dos efeitos socioeconômicos;
Medição do impacto direto no financiamento da conservação;
Inclusão de áreas de caça como OECMs no marco de biodiversidade da ONU;
Estudo das percepções locais e internacionais sobre a prática.
Implicações globais e para o Brasil
O estudo revela que a caça de troféus, quando bem regulada, é uma poderosa ferramenta de conservação e um mecanismo legítimo de redistribuição de renda. O modelo asiático mostra que mesmo em locais remotos e de difícil acesso, é possível gerar recursos, proteger espécies e beneficiar populações. Isso desmonta a retórica simplista que demoniza caçadores e reforça a urgência de um debate racional e técnico sobre a reintrodução de práticas similares no Brasil.
Conclusão: pela liberdade de caçar para comer
Defender o direito de caçar não é defender o abuso da natureza, mas sim o acesso igualitário a uma fonte legítima de alimento, cultura e liberdade. Criminalizar o caçador enquanto se tolera a destruição ambiental por agronegócios, madeireiras ou mineradoras é puro cinismo legislativo.
É hora de romper com o discurso disfarçado de ambientalismo e devolver ao brasileiro comum o direito de se alimentar com dignidade, de honrar suas tradições e de ensinar aos seus filhos o valor da comida que vem da terra — e não de um pacote de supermercado.

Referências bibliográficas
- Grau, A. et al. (2014). Wild boar meat: nutritional properties and its potential as functional food. Journal of Food Composition and Analysis. https://doi.org/10.1016/j.jfca.2014.04.008
- University of Nebraska (2020). Venison: A heart-healthy red meat. https://digitalcommons.unl.edu/usfwspubs/65
- Kelly, R.L. (1995). The Foraging Spectrum: Diversity in Hunter-Gatherer Lifeways. Smithsonian Institution Press.
- US Fish & Wildlife Service. https://www.fws.gov
- National Shooting Sports Foundation. https://www.nssf.org
- Embrapa – Javali no Brasil. https://www.embrapa.br
- OFB – Office Français de la Biodiversité. https://www.ofb.gouv.fr
- USDA Feral Swine Program. https://www.aphis.usda.gov
- DI BELLA, Sara et al. Does hunted wild boar meat meet modern consumer nutritional expectations?. Italian Journal of Food Safety, [S. l.], v. 13, p. 11608, 2024. DOI: 10.4081/ijfs.2024.11608. Disponível em: https://www.pagepressjournals.org/index.php/ijfs/article/view/11608. Acesso em: 19 maio 2025.
- DI MININ, Enrico; LEADER-WILLIAMS, Nigel; BRADSHAW, Corey J. A. Banning trophy hunting will exacerbate biodiversity loss. Trends in Ecology & Evolution, [S. l.], v. 31, n. 2, p. 99–102, 2016. DOI: 10.1016/j.tree.2015.12.006.
- PARKER, B. G. et al. A review of the ecological and socioeconomic characteristics of trophy hunting across Asia. Animal Conservation, [S. l.], v. 26, p. 609–624, 2023. DOI: 10.1111/acv.12840. Disponível em: https://zslpublications.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/acv.12840. Acesso em: 21 maio 2025