
Há uma perigosa mentira que tem servido de escudo moral para os que cometem injustiças em nome do Estado: “estou apenas cumprindo ordens.”
Essa justificativa percorre a história como uma trilha de sofrimento. Ela foi amplamente utilizada pelos burocratas soviéticos que enviavam dissidentes para campos de trabalho na Sibéria, pelos oficiais cubanos que confiscaram propriedades de famílias inteiras sob ordens do partido, pelos agentes do regime chinês que reprimem com brutalidade qualquer voz dissidente — todos afirmando que “apenas seguiam o protocolo”.
Hoje, essa mesma lógica sobrevive no Brasil, disfarçada sob a capa da legalidade, nos gabinetes climatizados, nos balcões de repartições, nas ruas patrulhadas. Seu impacto é concreto, visível, cotidiano — embora raramente questionado.
Durante a pandemia de COVID-19, vimos agentes da vigilância sanitária — muitas vezes escoltados por policiais — fecharem padarias, impedirem a abertura de mercearias de bairro, arrastarem comerciantes pela calçada sob gritos de desespero. O argumento era sempre o mesmo: “estamos apenas fazendo nosso trabalho.” Mas que espécie de trabalho é esse que destrói o sustento dos pobres em nome de um decreto?

Policiais continuam a prender cidadãos honestos cujo único “crime” foi portar uma arma para se proteger — em um país onde a criminalidade se tornou parte do cotidiano. Muitos desses policiais sabem que estão prendendo inocentes. Sabem que o cidadão armado não é o inimigo. Ainda assim, seguem ordens, confortando-se na ideia de que “não podem prevaricar”.

Juízes, por sua vez, proferem sentenças que ignoram o bom senso jurídico, mas obedecem à cartilha ideológica do momento. Usam a toga para se esconder da responsabilidade pessoal, e a jurisprudência como desculpa para decisões políticas. E quando tudo dá errado, dizem: “Fiz o que manda o sistema.”
Soldados, no Brasil e no mundo, são enviados a operações ou missões absurdas, travadas não em nome da liberdade, mas por interesses geopolíticos ou internos que não têm coragem de assumir a própria natureza. Voltam feridos, esquecidos, descartados — tendo servido não à pátria, mas à conveniência de um governo.

Mas nada foi tão simbólico quanto o que ocorreu no Brasil em 2022. Militares — outrora tidos como a última esperança da legalidade e da ordem — enganaram cidadãos de bem que se manifestavam pacificamente, levando-os a crer que seriam protegidos, que haveria uma reação legítima em defesa da Constituição. Em vez disso, entregaram-nos ao aparato repressivo do Estado. De aliados, tornaram-se carcereiros. E fizeram isso para proteger não a pátria, mas os interesses escusos dos níveis mais baixos do próprio sistema que fingiam combater. Nunca se exigiu tanto silêncio da farda diante da injustiça.
A verdade que não se ousa dizer é simples e brutal: o mal não precisa de monstros. Basta uma multidão de funcionários obedientes, disciplinados, moralmente entorpecidos. Hannah Arendt chamou isso de “a banalidade do mal”. O mal, hoje, usa crachá, carimba papéis, preenche formulários e diz: “não posso fazer diferente”.
Costuma-se dizer: “armas não matam pessoas — pessoas matam pessoas.” O mesmo raciocínio se aplica ao desarmamento: governos não desarmam pessoas — pessoas desarmam pessoas. São fiscais que confiscam, são policiais que prendem, são juízes que legitimam, são militares que traem. Nenhuma dessas ações é impessoal. Cada uma tem um rosto, uma assinatura, uma decisão individual.
O servidor público, seja policial, fiscal, juiz ou soldado, é — antes de tudo — um ser humano dotado de consciência e responsabilidade. Ele não pode se esconder atrás da instituição como se fosse um robô sem escolha. Deve responder não apenas à norma, mas à ética; não apenas aos superiores, mas à própria consciência.
Quando alguém prende um inocente, destrói o sustento de uma família, ou suprime uma liberdade individual com base em uma ordem injusta, essa pessoa se torna mais que cúmplice: ela se torna o próprio agente do mal.
É preciso lembrar: a obediência não é virtude quando dirigida ao injusto. Um servo fiel a um regime autoritário não é inocente — é peça fundamental da opressão.
Devemos exigir que a lei seja cumprida, sim — mas acima disso, que ela seja justa. E quando a justiça e a consciência entrarem em conflito com a ordem burocrática, que se cumpra a consciência.
Porque enquanto todos obedecerem sem pensar, a liberdade morrerá em silêncio.