
Existem momentos na história do Brasil que, para os mais atentos, revelam com clareza a fragilidade daquilo que costumamos chamar de democracia — ou mesmo do próprio ordenamento jurídico nacional. Estudantes de direito, membros do Ministério Público, magistrados e grande parte dos funcionários públicos costumam ser doutrinados, no sentido mais pejorativo da palavra, a confiar cegamente no sistema político e no processo legislativo brasileiros. No entanto, fora dessa bolha ideológica e institucional, a realidade é, no mínimo, alarmante.
É curioso como a população, muitas vezes, se comporta como um sapo sendo fervido lentamente em uma panela, sem perceber a gravidade crescente da situação que a cerca. Muitos acreditam que essa deterioração democrática é algo recente, fruto das políticas adotadas pelo atual governo. Mas a verdade é que o sistema brasileiro apresenta sinais de profunda fragilidade desde o golpe contra a monarquia em 1889 — um marco que abriu as portas para uma sucessão de decisões autoritárias, muitas vezes desconectadas da vontade popular.
Neste texto, vamos nos debruçar sobre um capítulo específico dessa história: a outorga do que ficou conhecido como Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003) e, especialmente, o referendo popular de 2005. Dois momentos distintos, porém interligados, que expõem não apenas os vícios de origem dessa legislação, mas também o desprezo das instituições brasileiras pela soberania popular.
O Estatuto do Desarmamento: nascido da corrupção
A Lei nº 10.826/2003, chamada popularmente de Estatuto do Desarmamento, foi apresentada com o discurso de reduzir a violência e trazer paz à sociedade. No entanto, por trás dessa narrativa, havia um enredo muito mais obscuro. Conforme reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, a aprovação da lei ocorreu sob o manto do escândalo do Mensalão — um esquema de corrupção no qual parlamentares recebiam pagamentos ilícitos em troca de apoio político ao governo de então, liderado pelo Partido dos Trabalhadores.
Não se trata de uma teoria conspiratória sustentada por ativistas pró-armamento. Trata-se de um fato reconhecido judicialmente: o Estatuto do Desarmamento foi votado e aprovado com base em um sistema de compra de votos dentro do Congresso Nacional. Um processo legislativo totalmente contaminado, antidemocrático, fruto direto da corrupção — tanto de quem propôs quanto de quem votou a favor da norma.
À luz desse contexto, é legítimo questionar: como pode uma legislação nascida de um dos maiores escândalos políticos da história recente do país ser aplicada com tanto rigor por promotores, juízes e agentes de segurança pública? Como se pode exigir respeito a uma lei que jamais deveria ter existido nos moldes em que foi imposta?
O referendo: o povo rejeita o desarmamento
A própria Lei nº 10.826, em seu artigo final, previa a realização de um referendo popular que decidiria se o comércio de armas de fogo e munições deveria ou não ser proibido no Brasil. Com a máquina pública nas mãos, políticos e setores da grande mídia iniciaram uma ofensiva massiva de propaganda a favor da proibição. Campanhas foram financiadas com recursos públicos e privados, entrevistas foram coordenadas, artistas foram mobilizados. Tudo para convencer o povo de que abrir mão do seu direito à legítima defesa era um ato de cidadania.
Mas o que se viu foi o oposto. No dia 23 de outubro de 2005, mais de 64 milhões de brasileiros disseram “não” à proibição do comércio de armas. Com mais de 63% dos votos válidos, a vontade popular foi clara, direta e inegociável: o povo brasileiro rejeitou o desarmamento.
Foi uma resposta direta à tentativa de silenciar a liberdade individual em nome de uma falsa promessa de segurança coletiva. Foi um grito contra o autoritarismo disfarçado de benevolência. Foi a vitória da razão sobre o medo.
A traição ao resultado do referendo
No entanto, mesmo diante de uma decisão tão expressiva e incontestável, o que se seguiu foi uma das maiores traições institucionais da história do país. Em vez de respeitar a vontade soberana do povo, o Estado brasileiro — em suas diversas esferas e poderes — optou por ignorá-la.
A Lei nº 10.826 continuou em vigor, como se o referendo jamais tivesse existido. Mais do que isso: o governo e o Judiciário passaram a endurecer ainda mais as restrições ao acesso às armas, criando decretos, portarias e jurisprudências que avançaram sobre a liberdade individual de forma cada vez mais autoritária.
Ou seja, em vez de ser corrigida ou revogada, a lei fruto da corrupção foi reafirmada, fortalecida e blindada contra a vontade popular. Uma afronta escancarada ao princípio democrático mais básico: o respeito ao resultado das urnas.
O que aprendemos com tudo isso?
O referendo de 2005 é um marco não apenas da luta armamentista, mas da história política do Brasil. Ele mostra que, quando o povo tem voz, ele escolhe a liberdade. Mas também nos ensina que nossas instituições, infelizmente, ainda estão longe de garantir o respeito à soberania popular.
Enquanto a legislação nascida da corrupção continua sendo aplicada com rigor, os brasileiros seguem lutando — nas redes, nas ruas e no Congresso — pelo direito fundamental à legítima defesa.
Lembrar o referendo de 2005 não é apenas revisitar o passado. É manter viva a memória de que a vontade do povo já foi expressa com clareza, e de que não existe democracia possível quando essa vontade é ignorada.