
Introdução
O debate sobre o direito ao porte e à posse de armas no Brasil tem sido marcado por intensas discussões políticas, sociais e jurídicas. Enquanto movimentos civis lutam pela ampliação desse direito, é surpreendente observar que alguns juristas, que se posicionam publicamente a favor das armas, acabam por adotar posturas que, na prática, enfraquecem a causa.
Este artigo busca analisar como certos juristas ativistas, ao invés de fortalecerem o direito às armas, contribuíram para um cenário ainda mais restritivo — e propõe caminhos para evitar que esses erros se repitam.
1. As fontes do Direito: compreendendo os alicerces jurídicos
Para entender como as interpretações jurídicas impactam o direito às armas, é fundamental conhecer as fontes do Direito. No ordenamento jurídico brasileiro, as principais fontes são:
- Lei: normas editadas pelo Poder Legislativo, como a Constituição, leis ordinárias e complementares;
- Jurisprudência: decisões reiteradas dos tribunais que orientam a aplicação do Direito;
- Doutrina: estudos e interpretações de juristas sobre as normas jurídicas;
- Costumes: práticas reiteradas e aceitas pela sociedade como obrigatórias.
Essas fontes não atuam isoladamente; elas se inter-relacionam e influenciam mutuamente na construção e aplicação do Direito.
Como afirma Paulo Nader:
“As fontes do direito constituem os instrumentos pelos quais se manifestam as normas jurídicas. Nenhuma delas possui autoridade absoluta, sendo necessário examiná-las em conjunto e dentro de um contexto histórico e social.”
Fonte: NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
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2. A relevância da doutrina na formação da jurisprudência
A doutrina exerce um papel crucial na interpretação das leis e na formação da jurisprudência. Os estudos e pareceres de juristas renomados frequentemente embasam decisões judiciais e orientam a aplicação das normas. Quando a doutrina é bem fundamentada e coerente, ela fortalece a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões.
Como aponta Miguel Reale, a doutrina não apenas explica o direito positivo, mas também:
“Serve de elemento criador da jurisprudência e, por conseguinte, da própria evolução normativa.”
Fonte: REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
Além disso, segundo Norberto Bobbio:
“Quem controla o discurso jurídico, controla o direito aplicado.”
Fonte: BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Ed. UNB, 1999.
Ou seja, a ausência de doutrina pró-liberdade armamentista fortalece o controle estatal.
3. A formação jurídica e a influência do pensamento estatal
A formação dos profissionais do Direito no Brasil é, em grande parte, moldada por uma visão estatista e centralizadora. Desde a graduação, estudantes são expostos a uma doutrina que valoriza o papel do Estado como principal agente regulador das relações sociais. Essa perspectiva frequentemente desvaloriza a autonomia individual e os direitos fundamentais, como o da legítima defesa.
Dalmo Dallari, embora defensor do Estado forte, reconheceu:
“Nossas escolas de direito, por tradição e estrutura, formam juristas submissos ao Estado, e não cidadãos críticos.”
Fonte: DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003.
O filósofo Michel Foucault alertou:
“O poder não se localiza apenas nas estruturas, mas nas práticas e discursos que elas impõem.”
Fonte: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2014.
Consequentemente, até juristas pró-armas acabam presos a premissas do próprio sistema que dizem combater.
4. Hermenêutica jurídica: as diferentes formas de interpretar a lei
A hermenêutica jurídica é a ciência da interpretação das normas legais. Existem diversas escolas hermenêuticas, entre elas:
- Literal ou gramatical: foca no significado das palavras utilizadas na lei;
- Sistemática: considera o contexto da norma dentro do ordenamento jurídico;
- Histórica: leva em conta a intenção do legislador;
- Teleológica: analisa a finalidade da norma;
- Sociológica: adapta o sentido da norma às transformações sociais.
Carlos Maximiliano, em sua clássica obra, advertia:
“Não se pode interpretar a norma contra o seu texto; a exegese há de buscar o sentido que, segundo a boa-fé, o legislador ali depositou.”
Fonte: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Forense, 2005.
Lenio Streck complementa com uma crítica moderna:
“Não existe interpretação inocente. O juiz que diz aplicar a lei como está, já está, de fato, interpretando conforme suas pré-compreensões.”
Fonte: STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.
5. O caso do porte para atiradores e a falha na interpretação jurídica
Um exemplo emblemático dessa falha interpretativa é o artigo 6º, inciso IX, da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), que diz:
“Art. 6º É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:
(…)
IX – os integrantes das entidades de desporto legalmente constituídas, cujas atividades demandem o uso de armas de fogo […]”
Apesar da clareza da norma, muitos juristas e autoridades passaram a tratar esse “porte” como se fosse apenas “transporte”, exigindo que a arma estivesse desmuniciada, separada da munição, e com autorizações adicionais – distorcendo por completo o texto legal.
Ingo Wolfgang Sarlet, constitucionalista, afirma:
“O texto legal deve ser interpretado de forma a garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais.”
Fonte: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
Logo, reduzir “porte” a “transporte” é uma negação da própria letra da lei.
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Conclusão: construindo uma doutrina jurídica comprometida com a liberdade
Para que o direito às armas seja efetivamente garantido no Brasil, é imprescindível que juristas, advogados, promotores e juízes adotem uma postura coerente com os princípios da liberdade individual e da legítima defesa. Isso implica em:
- Rejeitar interpretações jurídicas que, embora travestidas de neutralidade, servem para restringir direitos fundamentais;
- Produzir e disseminar uma doutrina sólida, bem fundamentada e alinhada com os valores da liberdade e da responsabilidade individual;
- Promover uma formação jurídica que valorize a autonomia do indivíduo e questione o papel excessivo do Estado na regulação das liberdades pessoais.
Somente por meio de uma mudança profunda na abordagem doutrinária e hermenêutica será possível assegurar que o direito às armas seja respeitado e protegido — como exige a letra da lei e o espírito da liberdade.
Este artigo visa fomentar o debate e a reflexão crítica sobre a atuação dos juristas no contexto do direito às armas no Brasil. A construção de uma doutrina jurídica comprometida com a liberdade é um passo essencial para a consolidação de uma sociedade mais justa e segura.