
César Henrique Guazzelli e Sousa. Jornalista e professor. Doutorando em História pela UFG. Membro do Instituto Defesa.
A ideia do monopólio estatal da violência
Quando nos dispomos a debater um assunto tão sério como a questão do monopólio da legitimidade do uso da violência pelo Estado, contrapondo-a à possibilidade de a população valer-se de meios privados para garantir a defesa da segurança, propriedade e vida de si e seus familiares, não há atalhos. Em nenhum dos polos do debate podemos aceitar slogans repetidos como mantras sem justificativas que os endossem e ‘frases feitas’ escamoteadas como argumentos. É necessário avançar com muito cuidado e responsabilidade, tendo sempre em vista a defesa de determinados princípios e valores individuais e coletivos e, principalmente, do bom senso. Creio que, indo por esse caminho, é possível compreender por que acreditamos ser coerente e necessária a flexibilização da nossa legislação desarmamentista.
Tradicionalmente, os autores que se propõem a discutir a questão do monopólio estatal sobre o uso da violência recorrem ao clássico sociólogo alemão Max Weber. No Brasil, essa abordagem é encontrada em apreciações dos principais especialistas sobre o tema, a exemplo de Sergio Adorno, Michel Wieviorka, Alba Zaluar e Kant de Lima – seja para endossar, seja para refutar a noção de Estado moderno por ele proposta. Weber, em um longo artigo chamado ‘A Política como Vocação’, definiu o Estado moderno como instituição que tem como sua característica definidora o monopólio do uso legítimo da violência física dentro de determinado território.
Ou seja, o Estado avançou historicamente sobre os diversos campos sociedade em que o uso da força e o emprego de armas foi usado legitimamente por grupos privados (milícias, exércitos particulares, ligas de mercadores) durante o período de formação dos Estados Nacionais na segunda metade do séc. XIX; tomou para si, então, a exclusividade do uso legítimo da violência. Esse monopólio tem relação direta com o poder e com a dominação do Estado sobre seus cidadãos. Ele não busca garantir o bem-estar dos contribuintes, mas a estabilidade e a manutenção da existência do próprio Estado sobre o território que domina.
Isso não quer dizer, de forma alguma, que toda forma de violência que tem o Estado como agente é legítima. Muito pelo contrário. A legitimidade da ação coercitiva ou punitiva/repressiva do poder público está vinculada ao que, dentro das normas e princípios estabelecidos pelo poder constituinte e legal, é autorizado. Os agentes de Segurança Pública, dessa forma, dentro da perspectiva de Weber, devem ser altamente treinados tanto do ponto de vista técnico e ético como do ponto de vista burocrático-legal para agirem somente em favor do interesse público, dentro dos limites legalmente autorizados. Qualquer ação que saia desses limites é ilegítima.
O Estado moderno, ao contrário das diferentes configurações políticas que existiram em períodos anteriores ao século XVIII, não tem seu poder legitimado pela tradição (a ideia de que ‘sempre foi assim’) ou pelo carisma de um grande líder político. Ele se funda em princípios racionais que, para nós, são perceptíveis na forma de normas – basicamente as leis, portarias, decretos, atos normativos e a própria Constituição. Essas normas têm três dimensões. Por um lado, fundam-se em princípios. Por outro, definem fins ou objetivos a serem alcançados na sociedade a partir dos princípios defendidos. Finalmente, estabelecem meios e procedimentos-padrão para que esses fins sejam alcançados.
O grande problema é que, uma vez que o Estado consiga estabelecer o monopólio sobre os instrumentos coercitivos e punitivos de uma sociedade, particularmente o uso de armas, nada impede que ele deixe os fins e princípios que o guiam, atendo-se apenas à automatização dos procedimentos burocráticos (pautando seu funcionamento pelo que Weber denomina de ação racional baseada em meios). Esse foi, por exemplo, o problema central que envolveu o julgamento do tenente coronel nazista Adolf Eichmann por Israel. Apesar de seus atos, que levaram milhões de indivíduos aos campos de extermínio, serem moralmente reprováveis, ele os justificou dizendo que estava ‘apenas cumprindo ordens’. Defender o desarmamento da população é, portanto, também deixá-la à mercê de distorções do gênero, sem instrumentos para se defender não somente de ameaças advindas da sociedade civil, mas também do próprio Estado.
A racionalidade do Estado moderno e a CF/88
Foi exatamente essa base racional e legal que ditou a organização do Estado brasileiro desde a Constituição de 1891 até a nossa mais recente Carta Magna, a de 1988. Do ponto de vista dos princípios, os brasileiros, representados pela Assembleia Constituinte, adotaram tanto a perspectiva liberal clássica derivada das ideias iluministas, garantindo os Direitos Fundamentais dos cidadãos, quanto a perspectiva resultante das lutas sociais posteriores à revolução industrial. Nesse caso, ficaram garantidos os direitos sociais dos brasileiros. No artigo 6º da Constituição de 1988, pela primeira vez ficou expresso que a segurança é um direito social de todos os brasileiros. No art. 144 do mesmo dispositivo, a segurança pública é assumida como um dever do Estado e RESPONSABILIDADE DE TODOS, exercida para a preservação da ordem pública e a INCOLUMIDADE DAS PESSOAS E DO PATRIMÔNIO.
Isso quer dizer que a própria Constituição, que é a norma fundadora do poder do Estado sobre um território e seus cidadãos, delegou a toda a sociedade co-responsabilidade pela manutenção da ordem e da segurança pública, bem como a defesa da integridade física dos cidadãos e da integridade material do nosso patrimônio – público ou privado. Tal fato é reforçado pela lei dos servidores públicos federais (lei 8112/90), que cria, dentro das hipóteses de ‘agentes particulares em colaboração com o Estado’, a figura dos ‘gestores dos negócios públicos’. Estes são todas as pessoas que, em uma situação emergencial, na ausência de agentes do quadro do governo que executam funções típicas, agem em favor do interesse do Estado. É o caso de uma pessoa que arromba a porta de uma casa em incêndio para salvar alguém das chamas ou, ainda, de um cidadão civil que impede o assalto a um estabelecimento comercial ao reagir com prontidão e eficiência. Nesse caso, o indivíduo que agiu tem garantias constitucionais e legais de que a sua ação é legítima.
Assim, um dos princípios gerais que sustentaram a consolidação da nossa atual Constituição foi o seu forte caráter colaborativo, bem como a criação de um Estado que, idealmente, propôs-se a intervir minimamente na vida íntima e nas escolhas dos cidadãos, evidentemente dentro dos limites mais óbvios de moralidade e da legalidade. Nossa Constituição diz algo como: “brasileiros, farei o meu melhor. Caso vocês percebam que existem distorções e problemas que o Estado não está conseguindo suprir, organizem-se para cobrar resoluções do poder público e suprir essas demandas como sociedade civil organizada”. A campanha do desarmamento deflagrada no Brasil a partir de 1997, culminando no Estatuto de 2003, foi uma transgressão manifesta a essa premissa constitucional.
As contradições do desarmamentismo
A partir do que foi posto no parágrafo anterior, encontramos uma das maiores contradições dos radicais defensores do desarmamento. O Estado oferece a educação pública, desde o ensino básico até a formação superior. Caso eu, como cidadão, julgue que o serviço oferecido pelo poder público não satisfaz às minhas demandas, posso optar por uma escola ou Universidade privada. Da mesma forma, o Estado me oferece gratuitamente o serviço de atendimento médico pelo SUS, bem como os postos e hospitais de atendimento estaduais e municipais. Caso eu, como cidadão, queira contratar um plano de saúde, não há nenhum problema.
Seguindo, temos o serviço de Segurança Pública oferecido pela autoridade estatal. Se ele se mostrar insuficiente, já que foi sucateado por ingerências de múltiplos governos (em diversos setores), incapazes de suprir as demandas e urgências da sociedade, somos obrigados a conviver com isso passivamente? Repentinamente, a aquisição e manutenção de uma arma por um cidadão civil é um ato hediondo e desnecessário, e não o direito a compensar privativamente a insuficiência de uma prestação de serviço público? Por que o cidadão não precisa de uma autorização da Polícia Federal para frequentar um colégio privado ou contratar um plano de saúde, já que constitucionalmente a segurança é colocada no mesmo patamar da saúde, da educação e do direito a condições dignas de trabalho? Se o indivíduo cumprir os requisitos legais – já bastante rígidos – para a aquisição de uma arma de uso permitido, ele tem o direito subjetivo de adquiri-la.
Muitas pessoas argumentarão que a coisa não funciona bem assim. Eu tenho o direito, afinal, de me esconder atrás de um muro gigantesco, sobre o qual há uma cerca elétrica ou arame farpado. Também tenho o direito de contratar empresas de segurança armada, alarmes, circuitos internos de câmeras, blindagens, localizadores para automóvel e toda sorte de serviços do gênero. Ora, não é preciso argumentar para chegarmos à conclusão de que esses serviços estão acessíveis a poucas – muito poucas – pessoas com uma situação financeira privilegiada. O cidadão comum, portanto, fica à mercê da sorte, tendo o seu direito constitucional à dignidade, à segurança, à vida, à liberdade e à honra negado. Em terminais, nos transportes públicos, nas vias públicas, em certos bairros e demais locais em que o Estado ‘faz de conta que não vê’, essas pessoas correm risco e sofrem violência física e moral todos os dias. Se os defensores do desarmamento chamam isso de justiça social são, no mínimo, incoerentes.
Como notam certos autores, a exemplo de Wieviorka, Garland e Shearing, nas sociedades contemporâneas o modelo proposto por Weber já não se sustenta mais. O Estado concorre com uma série de constrições que fazem com que o monopólio da violência já não seja mais tangível. Facções criminosas controlam territórios urbanos e rurais, isolando-os do controle estatal; verdadeiros exércitos de vigilantes privados armados são mantidos por homens com poder financeiro para sustenta-los; a explosão endêmica da criminalidade, que ascende a níveis que superam a capacidade de ação preventiva e repressiva do poder público, parece ter fugido ao controle. Tudo isso coloca em xeque a premissa de que o Estado detém o monopólio do uso da violência, garantindo, assim, a pacificação e harmonização da sociedade. Muito pelo contrário, paz e harmonia definitivamente não são adjetivos aplicáveis ao Brasil contemporâneo.
Se o monopólio estatal sobre o emprego da coerção – que é precisamente o que defendem os desarmamentistas – se sustenta, portanto, é apenas do ponto de vista formal. Embora as intenções da maioria das pessoas que defendem o desarmamento sejam boas, é necessário reconhecer quando um modelo se esgotou ou, ainda, quando um modelo é equivocado. Lembremos que a Alemanha nazista, a União Soviética stalinista, a Espanha franquista, o Japão de Hirohito e a China maoísta mantinham um monopólio estatal ferrenho sobre o uso de armas (na verdade, sobre quase tudo). Denominar os armamentistas como ‘fascistas’, portanto, não deixa de ser uma grande ironia.
Para muitas pessoas, a ideia de flexibilizar as leis sobre a aquisição, manuseio e transporte de armas pela população civil parece uma iniciativa irrazoável e truculenta; porém, o fato é que nem sempre aquilo que formalmente parece bom o é de fato. Os grupos antibelicistas criaram, a despeito de suas intenções, uma sociedade violenta, ao delegar ao Estado o monopólio sobre uma atribuição com a qual ele não consegue arcar sozinho. Essa situação não mata somente os ‘cidadãos de bem’, mas também – e principalmente – as pessoas em situação de vulnerabilidade que optam pelo crime, que os advogados dos direitos humanos tanto se esforçam para defender. Muitas vezes, as boas intenções são vazias quando não há equivalência entre a aplicação prática de um posicionamento ideológico e as consequências que dele derivam. Entre princípios idílicos que resultam em um mundo bárbaro e ações pragmáticas que resultam na melhoria da nossa crítica situação social, fico com a segunda opção. Tomando emprestadas as palavras do poeta romano Décimo Juvenal, o Estado mantém a sua vigília sobre nós. Mas quem vigia os vigilantes?
Existem no Brasil diversos problemas jurídicos e comportamentais, quando falamos sobre armas.
Digo juridicamente pois temos diversos erros de concordância na própria constituição, além dos inúmeros códigos e estatutos que temos. Se a própria lei por vezes contraria a própria lei, então o que define o que é certo e errado? Além, ainda temos uma constituição falha, pouco clara e com diversas brechas, dando espaço a duas, três e mais interpretações e aplicações da mesma. Prova disso é o censo comum que sempre “há uma brechinha” na lei para beneficiar grandes empresários, políticos, etc etc.
E digo comportamental por três pontos principais. O primeiro é o achismo. Tem gente que “acha” que arma é coisa de bandido. Tem gente que “acha” que não precisamos de arma. Acham com base em que? E aí entra o segundo problema: falta de costume de buscar a verdade dos fatos. A mídia é sensacionalista e empurra o que quer, e muita gente aceita sem contestar. Isso ocorre não só com a política do desarmamento, mas com diversos outros assuntos que não precisam ser citados.
E o terceiro ponto é político. Como o autor do texto aborda, o Estado é que dita as regras, criando e abstraindo leis. E quem representa o Estado são os políticos. E quem elege os políticos? O próprio povo. Quando o povo se tocar de que é o Tiririca e Jean Willys que vão determinar se eu terei ou não o direito de me defender, talvez a coisa mude e esses personagens políticos non-sense sejam extintos de vez.
Mas existe um grande ponto por trás disso. Uma população desarmada é mais fácil de ser subjugada.
Excelente comentário.