A segunda emenda e a suprema corte dos Estados Unidos

Por César Guazzelli

 

O contexto da Segunda Emenda

 

Nos debates que envolvem o direito de os cidadãos portarem armas, a Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos frequentemente aparece como um exemplo para ilustrar e respaldar opiniões bastante diversas. Tanto para a condenação da legislação estadunidense, quando se argumenta que ela é a causa maior dos constantes casos de tiroteios em massa (mass shootings) no país, quanto nas opiniões concordantes com a lei, percebida como garantia necessária para a preservação de uma série de direitos fundamentais, a exemplo da vida, propriedade e salvaguarda do indivíduo perante o Estado e terceiros, a Segunda Emenda é incontornável para qualquer pessoa que queira debater sobriamente a questão do porte civil de armas de fogo.

Em um contexto marcado pela enorme influência do Iluminismo sobre a política, que invalidava a ideia de que o Estado é uma propriedade privada do rei, assumindo-o como uma instituição pertencente à coletividade de cidadãos, os Estados Unidos se tornaram independentes da Inglaterra e, no final do século XVIII, os representantes do novo país promulgaram três textos conhecidos como Cartas da Liberdade (Charters of Freedom). Os textos são: A Declaração da Independência (1776), a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e o Bill of Rights (1791), que acrescentou ao texto constitucional americano dez emendas, entre as quais a segunda, que diz, “Uma milícia bem regulamentada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e portar armas, não devem ser infringidos”.  A maior preocupação dos legisladores constituintes na ocasião era barrar as tentativas inglesas de recolonização, assim como afirmar os direitos individuais frente o Estado.

Durante todo o século XIX a Segunda Emenda jamais foi contestada. Parecia bastante óbvio para todos os americanos que o direito de portar armas era uma salvaguarda necessária para garantir o direito de autodefesa dos cidadãos e evitar que o Estado tivesse o monopólio do uso da violência, assim como acontecia no arcaico Estado Absolutista. Enquanto os Estados Unidos expandiam o seu território e transformavam-se em um país continental por meio de compras, acordos e conquistas militares, não fazia muito sentido falar em limitação ao uso de armas de fogo pelos cidadãos. Sem elas, certamente os pioneiros que se arriscaram além dos Montes Apalaches ou do Mississipi seriam massacrados. Igualmente, graças ao contato comercial com os franceses, de quem adquiriram armas de fogo, os índios Comanches,  Sioux e Blackfoot das Grandes Planícies americanas conseguiram resistir mais do que quaisquer outros ao exército americano. Foram as milícias armadas independentes que garantiram a Independência do Texas em relação ao México e sua posterior anexação aos Estados Unidos em 1845. Com a revolução causada pelos revólveres de repetição fabricados por Samuel Colt e Smith & Wesson, assim como os rifles Winchester, a Guerra Civil Americana foi, juntamente com a Guerra do Paraguai, a primeira guerra total registrada, garantindo a liberdade de milhões de pessoas escravizadas, embora às custas de 600 mil mortes. De fato, no século XIX, a história dos Estados Unidos e a história das armas de fogo se confundiam.

 

O problema da interpretação da Segunda Emenda

 

            Embora a leitura inicial da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos pareça evidenciar de forma bastante clara a intenção dos ‘pais fundadores’ que escreveram a Carta Magna dos EUA, ou seja, garantir aos cidadãos o direito de portar armas e organizarem as instituições de defesa e segurança pública a partir da iniciativa popular, ao nos aprofundarmos em sua interpretação nos deparamos com um texto bastante ambíguo e polissêmico. Por incrível que pareça, a maior parte das polêmicas e disputas ligadas à interpretação da Segunda Emenda, opondo os membros da NRA (National Rifle Association) de um lado e os defensores do desarmamento do outro existem por causa de UMA VÍRGULA. Isso mesmo. Uma única vírgula faz com que a questão do armamento civil nos Estados Unidos frequentemente seja colocada em dúvida, abrindo espaço para interpretações que, muitas vezes, deslegitimam a ideia de que a Segunda Emenda garante constitucionalmente aos americanos o livre direito de adquirir e portar armas.

Dessa forma, quando o texto da emenda diz que uma milícia bem regulamentada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre(,) o direito do povo de possuir e portar armas, não devem ser infringidos, há abertura para duas linhas de interpretação. Na primeira, há o pressuposto de que a Segunda Emenda trata não de um, mas dois direitos: em primeiro lugar, o direito de organização de milícias, desde que atendam aos critérios explícitos de a.) serem bem regulamentadas; b.) serem necessárias para a segurança de um Estado livre. Em segundo lugar, o direito de as pessoas possuírem armas sem a intromissão do governo. Nessa linha de interpretação, entendemos que o direito de milícia ASSIM COMO o direito de portar armas não devem ser infringidos.

Contudo, uma segunda interpretação percebe que o direito de formação de uma milícia bem regulamentada e o direito de possuir armas não são colocados com o sentido de adição (Direito A + Direito B). Antes disso, o direito de portar armas, para essa linha de raciocínio, somente é garantido com o fim de formar milícias, que contemporaneamente equivalem-se às forças policiais municipais e estaduais dos EUA. Além disso, essa segunda interpretação assume o argumento de que a palavra ‘povo’ (people) na Segunda Emenda evidencia o fato de que o direito de portar armas não é individual, mas coletivo (o que, na minha modesta opinião, não faz muito sentido).

Historicamente, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou diversas decisões a respeito do tema, ora pendendo para um lado da contenda, ora para o outro. Algumas vezes essas interpretações buscam tentar entender qual era a intenção original dos legisladores que escreveram a emenda. Outras vezes, há uma interpretação orgânica da Constituição, ou seja, a ideia de que a forma de compreender o texto constitucional deve mudar ao longo do tempo, acompanhando as mudanças da sociedade. Veremos a seguir algumas das principais decisões do colegiado maior do Poder Judiciário dos Estados Unidos sobre o tema e a forma como ele refletiu nos direitos dos cidadãos do país em questão a respeito do porte de armas.

 

Julgamentos históricos da Suprema Corte Americana sobre a Segunda Emenda: entendendo o direito de acesso a armas nos EUA.

 

  • Prefeitura de Nova Iorque contra Miln (1837)Embora não tenha relação direta com a Segunda Emenda, este caso influenciou indiretamente no direito de portar armas nos Estados Unidos. Em 1836, uma lei estadual de Nova Iorque obrigava todos os navios que aportassem no Estado a fornecer uma lista com o nome dos passageiros e assegurar que nenhum deles fosse alvo de acusações públicas. Miln, capitão de um navio, se recusou a cumprir a lei, alegando que a Cláusula de Comércio da esfera federal o protegia, e foi multado pelo prefeito de Nova Iorque. O caso foi parar na Suprema Corte Americana, que decidiu a favor do Estado de Nova Iorque, dizendo que o ‘poder de polícia’ do Estado – o direito da autoridade pública de tomar quaisquer medidas necessárias para garantir a saúde, segurança e bem-estar de seus cidadãos – estava sendo corretamente exercido em Nova Iorque na ocasião para “prover medidas de precaução contra a pestilência moral de miseráveis, vagabundos, assim como possíveis criminosos e para a proteção contra pestilências físicas”. Na prática, essa decisão atestou que o exercício do poder de polícia do Estado poderia restringir certos direitos individuais, o que incluiria o porte de armas, se o governo local conseguisse sustentar que isso era necessário para o bem maior.

 

  • Estados Unidos contra Cruikshank (1875)Em abril de 1873, uma milícia armada de brancos sulistas em Colfax, Louisiana, atacou um grupo de afro-americanos livres do Partido Republicano que haviam montado guarda no Fórum local para defendê-lo de ataques dos Democratas. O líder da milícia, William Cruikshank, foi acusado com base na Lei dos Direitos Civis de 1870, criada para combater promotores de ódio racial (especialmente a Klu Klux Klan). O Fórum foi incendiado, mais de cem negros foram assassinados e os demais forçados a entregar suas armas. Entre as acusações, julgadas pela Suprema Corte em 1876, havia a “violação do direito de portar armas dos homens libertos”. Na decisão, a Suprema Corte afirmou que o direito de portar armas não era garantido pela Constituição dos Estados Unidos, tampouco dependia dela para existir. Ele era, mais do que isso, um direito natural. Dessa forma, a Segunda Emenda garantia “que esse direito não deve ser infringido; mas isso … significa tão somente que o Congresso não pode violá-lo”. Para os juízes envolvidos nessa decisão, parecia claro que as pessoas eram livres para “se organizarem e buscarem proteção contra qualquer violação dos direitos que elas conhecem”. Porém, quando o direito de portar armas fosse violado por terceiros, e não pelo governo, cada um deveria procurar a justiça local para garantí-lo (atitude da Corte que, na prática, foi de lavar as mãos e dizer que não iria se meter no assunto). Para que fique claro, os juízes disseram o seguinte: ‘o Estado não pode fazer nada para limitar seu direito de portar armas. Porém, se outra pessoa tomar a sua arma, o problema já é seu, não meu’. Essa decisão foi de fundamental importância, pois estabeleceu um marco na interpretação da Segunda Emenda ao atestar que o direito de portar armas não era um direito coletivo, mas individual.

 

  • Presser contra Illinois (1886) Em 1879, Herman Presser, um sindicalista alemão radicado em Illinois, mantinha uma milícia armada chamada Lehr und Wehr Verein (Associação Instruir e Defender), um grupo de trabalhadores – em sua maioria imigrantes – associados ao partido socialista local. O grupo havia sido criado para confrontar as grandes companhias industriais de Chicago, que mantinham exércitos privados. No dia 24 de setembro deste mesmo ano, Presser desfilou com mais de 400 homens armados pelas ruas de Chicago montado a cavalo. Em vez de mergulharem em um conflito local, as companhias de Chicago organizaram um processo contra Presser, que acabou indo parar na Suprema Corte Americana. A acusação era de “ilegalmente pertencer a, além de desfilar e exibir-se com um corpo não autorizado de homens armados, que se associaram como uma companhia militar organizada, sem licença do governador e sem qualquer relação com a milícia regular do Estado de Illinois ou as tropas dos Estados Unidos”. Presser alegou perante a Suprema Corte Americana que a Segunda Emenda o acobertava e o inocentava, mas o entendimento dos juízes foi bem diferente. No julgamento, os magistrados reiteraram que não era possível contestar na esfera do Governo Federal a garantia de as pessoas possuirem e portarem armas. Porém, ainda segundo os magistrados, a lei de Illinois, que obrigava as pessoas a uma autorização prévia para o porte de armas e para desfilarem armadas nas cidades, não entrava em conflito com a Segunda Emenda. Isso porque ela limitava somente o poder do Congresso e do Governo Nacional, não o poder dos Estados. Contudo, era necessário, segundo a Corte, observar o princípio de que os Estados não poderiam desarmar a população em tal medida que não reste nenhuma força armada capaz de garantir a segurança dos cidadãos. Essa decisão, associada à de Cruikshank, passou a ser usada frequentemente como exemplo pelos juízes dos Estados Unidos em decisões que opunham a Constituição Federal às Constituições Estaduais, demonstrando que uma não se sobrepunha hierarquicamente sobre as outras.

 

  • Estados Unidos contra Miller (1939)Em 1934, foi aprovada nos Estados Unidos a ‘Lei Nacional de Armas de Fogo’, com objetivo de regulamentar a taxação de fabricantes e distribuidores de certas armas, bem como políticas de restrição à importação e regras para transporte interestadual. Também foi criado um registro nacional para as armas no país. O ímpeto que levou à criação da lei em questão foi o rápido crescimento do crime organizado na ‘Era da Proibição’, especialmente em função da Lei Seca (caso emblemático de tentar controlar um problema por meio da proibição e acabar criando outro bem maior). Pistolas e revólveres convencionais foram excluídos de registro. Nesse contexto, Jack Miller, juntamente com Frank Layton, foi acusado pelo transporte de escopetas de cano serrado sem registro entre Estados. Entre os pontos da argumentação de Miller em sua defesa, constava que a sessão da Lei Nacional de Armas de Fogo que regulamentava o transporte interestadual de certas armas  era inconstitucional,  pois violava a Segunda Emenda. O juiz local de Arkansas deu ganho de causa para Miller e o Estado apelou, levando o caso à Suprema Corte. Esta acabou revertendo a decisão. Para a Suprema Corte, a Segunda Emenda, em conjunto com uma cláusla da Constituição sobre milícias, oferecia elementos para a afirmação de que “na ausência de qualquer evidência demonstrando que a posse ou uso de escopetas tem qualquer relação razoável com a eficiência de uma milícia bem regulamentada, não podemos dizer que a Segunda Emenda garante o direito de manter ou usar tal instrumento”. Essa interpretação, que vinculava o direito de portar armas ao estabelecimento de milícias regulamentadas pelos Estados (a polícia, basicamente), permaneceu como regra nas decisões da maioria dos magistrados dos EUA nos 60 anos seguintes.

 

  • Distrito de Columbia contra Heller (2008)Em 1975, o Distrito de Columbia promulgou uma lei de regulação e controle de armas de fogo. Basicamente, a partir dessa data o distrito baniu a posse de armas de fogo para civis, tornado crime o porte de armas não registradas e proibindo o seu registro! Para a polícia local, ficou reservada a possibilidade de conceder licenças temporárias, desde que os proprietários das armas legais as mantivessem descarregadas e travadas. Dick A. Heller, um policial do distrito, entrou com o pedido de registro de uma arma, que ele pretendia manter em casa para segurança familiar.  O pedido foi negado. O policial então entrou com uma ação contra o Distrito de Columbia evocando a Segunda Emenda e o caso foi parar na Suprema Corte. Em uma apertada decisão por 5 a 4, a Suprema Corte dos Estados Unidos postulou que a Segunda Emenda protege o direito individual de os cidadãos possuírem e portarem armas, não tendo esse direito qualquer dependência ou conexão com a formação de milícias. Assim, Heller venceu a ação e a lei de regulação e controle de armas de fogo do Distrito de Columbia foi considerada Inconstitucional.

 

  • McDonald contra Chicago (2010)Dois anos depois, esse caso reiterou a decisão proferida pelo caso de Columbia contra Heller e, mais ainda, estabeleceu um novo entendimento para outra questão: no conflito de competências entre Estado e União, para a aplicação da Segunda Emenda, prevalece o que foi postulado na Constituição dos Estados Unidos (os juízes se basearam na due process clause da Décima Quarta Emenda para que isso fosse definido). Dessa forma, todas as leis estaduais dos EUA que mantinham restrições severas ao direito de o cidadão possuir armas para defesa pessoal e patrimonial foram estabelecidas como inconstitucionais!

 

Pois bem. É isso aí. Espero que tenham gostado. Estou à disposição para conversar sobre o assunto e debater dúvidas.

9 Replies to “A segunda emenda e a suprema corte dos Estados Unidos”

  1. Ótimo texto!! Parabéns pelo conteudo, quando leio artigo de facil entendimento como esse que são frequentes na página, me da orgulho de ser sócio e certeza que estou a lutar por um direito que é imprescindível para toda humanidade!

  2. Ótima matéria, muitos de nós aqui do Brasil que somos a favor do porte de armas para o cidadão de bem e admiramos a legislação americana, não sabíamos dessa corrente pró-desarmamento que existe ou existia lá, ainda bem que nessas últimas duas decisões os desarmamentistas perderam! Mas e aqui no Brasil, onde os direitos e garantias individuais (entre eles garantia à vida e à segurança) da Constituição de 1988 são também parte de uma cláusula pétrea? Está mais que provado que o Estado não pode garantir a segurança, e consequentemente a vida de ninguém aqui, e a negação do porte de arma para quem atende aos requisitos necessários (fora a arbitrariedade de um delegado da PF, condição ridícula e visivelmente imposta para efetivamente negar o porte) não fere essa cláusula da Constituição? Não se poderia entrar com tal alegação de inconstitucionalidade para derrubar essa “arbitrariedade” por parte de quem quer que seja na concessão do porte?

  3. Gostei dos comentários de César Guazzelli. Não sou advogado. Apenas graduado em História. Sou militar da reserva(tenente -coronel) e lido com o assunto “disseminação de armas em meio à população civil” há 41 anos. Meu e-mail é nelsonassisbrasil@bol.com.br. Minha página no Facebook é NELSON ASSIS BRASIL. Tenho dedicado tempo quase integral a esse assunto. Conheço inglês e espanhol suficientemente para me comunicar verbalmente e/ou por escrito. Participo de alguns grupos do Facebook que são especializados no assunto armas. Gostaria de conversar. Sou portoalegrense mas moro em Livramento. Vou com certa frequência a Porto Alegre. Abraço.

  4. CREIO QUE SE O ESTADO NÃO TEM CONDIÇÃO DE DEFENDER O CIDADÃO DE BEM QUE PAGA SEUS IMPOSTOS, TRABALHA, EDUCA SEUS FILHOS, GERA RENDA. PELO MENOS PODIA ATRAPALHAR MENOS E ESTE CIDADÃO TER A CONDIÇÃO MINIMA DE SE DEFENDER

  5. Não é atoa que sempre tem um lunatico fuzilando quem ver pela frente lá nos EUA , ontem mesmo morreram mas de 50 em Las vegas e o louco que matou tinha uma coleção de armas

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